quinta-feira, 26 de novembro de 2009

As Árvores Morrem de Pé

O meu Amigo Mário Barradas morreu há dias. Segundo me contam, morreu de “morte santa”, como se costuma dizer, daquela morte súbita que desejamos àqueles que amamos e que pedimos para nós próprios. E ainda bem que foi assim, sem aquelas agonias lentas que corroem o corpo e parecem degradar a alma, mas antes como se fosse “de um tiro ou de uma faca de ponta”, como na canção de Lopes-Graça e como esperamos que possam morrer sempre os nossos heróis.
A imagem não é uma mera metáfora, porque o Mário foi realmente na sua vida um verdadeiro herói, daqueles que acreditam numa causa, que lutam por um sonho e que na sua entrega a essa luta se esquecem de si próprios e não perdem muito tempo a pensar no jogo das conveniências pessoais. Neste caso o sonho e a causa eram um ideal de fraternidade e de justiça cujo modelo concreto se pode contestar mas com uma sinceridade e uma dedicação que está acima de qualquer dúvida. E desse ideal constava também um princípio que para ele era evidente – o de que a Cultura e, em particular, o Teatro eram um bem comum, ao mesmo tempo uma fonte de felicidade e uma escola de reflexão cívica, uma presença que deveria ser constante no quotidiano dos cidadãos e que por isso mesmo o Estado democrático tinha o dever moral de garantir de forma estável e sustentada.
Conheci o Mário muito antes de ele me conhecer. Cruzámo-nos primeiro no Conservatório Nacional, onde foi um dos pilares da renovação da Escola de Teatro e onde, chegado de França, onde tinha trabalhado e estudado no Teatro Nacional de Estrasburgo, procurava trazer para Portugal um novo modelo de formação de actores e uma nova estética teatral, lúcida, empenhada, criativa, consciente do património clássico mas atenta à modernidade artística e aos desafios da cidadania. E depois reencontrei-o naquela que foi uma das minhas primeiras grandes experiências de espectador de Teatro, tinha eu dezasseis anos, pouco antes do 25 de Abril, num espectáculo extraordinário que me marcou para sempre: era A Grande Imprecação Diante da Muralha da Cidade, de Tankred Dorst, com encenação dele e com as presenças mágicas da Fernanda Alves, do Mário Jacques e do Vicente Galfo, numa produção dos Bonecreiros, um dos mais importantes grupos independentes que no início da década de 70 estavam a marcar a renovação radical da vida teatral portuguesa.
O espectáculo passava-se no auditório do Instituto Goethe, de que era então director Kurt Meyer-Clason, que na vaga Primavera marcelista aproveitava o seu estatuto de relativa “extra-territorialidade” para constituir para a minha geração um pólo insubstituível de produção artística de vanguarda e um espaço de liberdade criativa inusitada no meio das brumas da censura e da repressão. Lembro-me de que a fila para a bilheteira dava a volta ao Campo de Santana e que parecia perpassar por entre esta pequena multidão de adolescentes entre o final do Liceu e a Universidade um sentimento único de exaltação perante esta súbita brecha no muro de estupidez do regime. A peça falava da brutalidade da guerra, da violência de um Poder despótico e ilegítimo, da coragem de uma mulher que procurava o marido atrevendo-se a perguntar aos senhores da guerra a razão de ser daquela separação arbitrária. E tudo isto apresentado a uma geração que estava a crescer na ditadura, no hábito dos livros proibidos e dos filmes cortados, no medo da polícia de choque nas escolas e das prisões da PIDE, na sombra do espectro terrível da Guerra Colonial que ia consumindo os nossos irmãos e os nossos amigos mais velhos e aos nossos olhos se ia aproximando cada vez mais a passos largos. “Mas nas minhas costas sinto a cada momento o carro alado do Tempo que me persegue”, como no poema maneirista de Christopher Marvell.
Não sei se esta sensação de medo, de revolta e de esperança se pode comunicar com eficácia a um jovem da mesma idade trinta e tal anos depois, num quadro de liberdades democráticas formais adquiridas, e se este sentimento de estar ali a participar num pequeno ritual de resistência simbólica aparentemente inócuo (bem vistas as coisas, não houve ali cargas policiais, ao contrário do que tinha sucedido pouco antes, por exemplo, no Festival de Jazz de Cascais, nenhum de nós foi incomodado, voltámos todos tranquilamente para o conforto das nossas famílias da pequena-burguesia urbana, porque afinal de contas o Estado Novo tinha perigos mais sérios que o preocupassem) pode ser revisitado por quem não o viveu. Sei que o Mário ficou para sempre associado para mim a esta sensação rara de liberdade, a mesma que tínhamos quando ouvíamos meio às escondidas o Zeca Afonso cantar “que não há só gaivotas em terra quando um homem se põe a sonhar”
Veio o 25 de Abril e o Mário protagonizou uma experiência pioneira: formar em Évora, no velho Teatro Garcia de Resende, a primeira companhia de Teatro profissional descentralizada, à imagem dos Centros Dramáticos Regionais franceses. O projecto era conscientemente ambicioso: criar um espaço de produção teatral regular que apresentasse os clássicos e a dramaturgia contemporânea, as grandes referências do repertório internacional e a criação dramática portuguesa de todas as épocas, as linguagens cénicas tradicionais e as novas experiências performativas, e ao mesmo tempo estabelecer um centro de formação que preparasse todos os agentes necessários ao espectáculo, dos actores aos cenógrafos, dos maquinistas e carpinteiros de cena aos figurinistas e às equipas de produção. E na base desse esforço devia estar o princípio de uma contratualização estável entre o Estado e estas unidades descentralizadas de produção e formação, com vista ao objectivo comum da prestação de um serviço público cultural considerado essencial à qualidade de vida dos cidadãos.
Durante anos, o Mário circulou entre a sua presença fiel neste projecto em Évora, primeiro no Centro Cultural e depois no CENDREV, o Centro Dramático que lhe sucedeu pela fusão com o Teatro da Rainha, a cujos espectáculos eu ocasionalmente assistia quando passava pela cidade. Lembro-me em particular de um extraordinário monólogo, o Eu, Feuerbach, mais uma vez do seu querido Tankred Dorst e agora com uma encenação notável do Fernando Mora Ramos, que ele próprio protagonizava, deixando mais uma vez clara, para quem porventura já não se lembrasse, a sua estatura de grande actor. O Mário ziguezagueava entre esta luta constante e a participação, em funções várias, em sucessivas equipas de reflexão sobre a política teatral que se iam promovendo na estrutura sempre oscilante da Secretaria de Estado da Cultura e nas quais, em diferentes contextos políticos, continuou a lutar coerentemente pelo mesmo princípio de responsabilização estatal pelo serviço público na Cultura e nas Artes. Participou em comissões, assessorou governantes, redigiu manifestos e programas, viveu pequenas vitórias e grandes derrotas mas continuou sempre a acreditar que valia a pena continuar a tentar, sem entusiasmos ingénuos mas também sem derrotismos fáceis. Afinal, passe a referência a uma parábola maoista tipicamente “anos 60” que talvez não lhe agradasse, foi assim que Yunan moveu montanhas…
Poucos meses depois de eu ter chegado à Secretaria de Estado da Cultura, em 1995, morria outro dos meus amigos, José Ribeiro da Fonte, o primeiro presidente que eu tinha convidado para a Comissão Instaladora do projectado Instituto Português das Artes do Espectáculo, que devia assumir a responsabilidade do apoio do Estado ao sector privado na esfera das artes Performativas. E foi o Mário, com quem tinha entretanto estabelecido um contacto pessoal cada vez mais próximo e mais estimulante, que então convidei para lhe suceder. Durante quase dois anos trabalhámos lado a lado que nem loucos, sempre com o apoio da nossa Amiga comum Maria Augusta Fernandes, para concebermos o modelo estrutural do novo Instituto, transferirmos para este um conjunto coerente de competências que a gestão caótica de Pedro Santana Lopes tinha dispersado por uma rede avulsa e descoordenada de organismos diferentes, e ao mesmo tempo para irmos implementando no terreno um novo sistema de apoios ao Teatro, à Dança e à Música, baseado em regras claras de parceria entre o público e o privado, em compromissos programáticos plurianuais, em concursos transparentes avaliados por júris independentes e em articulações com os organismos estatais de produção artística no sector (o São Carlos, o D. Maria, o São João, o CCB). O Mário passou a ser uma presença constante no meu gabinete, um parceiro de trabalho de uma lealdade e de uma competência inexcedíveis, e simultaneamente um Mestre com quem fui aprendendo muito e pouco a pouco um Amigo que fiquei muito feliz por ter conquistado.
O Mário e eu tínhamos divergências políticas claras, mas como ambos as conhecíamos e as respeitávamos raramente falávamos delas, e quando o fazíamos era com algum pudor, com a preocupação, de parte a parte, de não gerarmos qualquer melindre, o que de resto nunca sucedia porque acabávamos sempre por descobrir mais pontos de convergência, talvez até inesperados para cada um de nós, do que de afastamento. Preferíamos, de resto, ir explorando tudo aquilo que íamos descobrindo em comum – convicções, princípios e projectos, mas também preferências, afectos, experiências artísticas e culturais e algum gosto partilhado pela sátira bem-humorada aos pequenos episódios do dia-a-dia.
Juntos fizemos muitos planos de trabalho para a acção do Ministério da Cultura na esfera das Artes do Espectáculo, e quando para ambos se tornou evidente que não íamos ter nem os meios orçamentais suficientes nem a cobertura política para cumprirmos os nossos compromissos eu saí primeiro, em Outubro de 1997, e ele, como logo nessa altura me tinha anunciado que faria também ele, poucos meses depois, apenas a tempo de deixar arrumados alguns dossiers que tinha em mão. E quando deixou o IPAE regressou, como eu próprio tinha feito, naturalmente, ao que antes fazia. Trabalhou ainda algum tempo no seu CENDREV, continuou a fazer formação teatral um pouco por todo o País e em França, onde constantemente o chamavam e lhe pediam que ficasse, e encenou em vários teatros – designadamente uma revisitação de uma obra pela qual tinha uma especial predilecção e que fora precisamente a primeira encenação sua a que eu tinha assistido, trinta e tal anos antes, ainda adolescente, a Comédia Mosqueta, de Angelo Beolco, então ainda com os Bonecreiros e de novo com Fernanda Alves, Mário Jacques e Vicente Galfo – outro espectáculo inesquecível.
O Mário foi sempre igual a si próprio, como uma árvore velha bem enraizada, a cuja sombra sabia bem acolhermo-nos. Tinha a paixão das suas convicções e podia ocasionalmente exaltar-se para as defender, mas em geral preferia um registo calmo, explicado, maiêutico. Tinha a consciência do seu valor mas não sentia a necessidade de ser ele a sublinhá-lo. Acreditava antes na força das suas ideias e nunca se escusava a propô-las e a defendê-las, mesmo em contextos institucionais onde sabia que não teria provavelmente sucesso imediato mas nos quais acreditava que era importante fazer ouvir mais uma vez a voz da razão, como uma espécie de sementeira a longo prazo.
Não sei se morreu pobre, mas sei que não morreu rico, ou pelo menos com a prosperidade material que em qualquer país ocidental um encenador e actor da sua dimensão teria sem qualquer dúvida alcançado ao fim de uma carreira distinta de longas décadas como a sua. Mas quando falávamos em termos gerais do problema de princípio implícito nessa situação, ou seja, da relação de profunda ingratidão que Portugal tem com a geração heróica que nos anos 60 e 70 lançou as bases do Novo Teatro português, lembrava-me por contraste e sem aparente azedume os tempos de combate do CENDREV onde em época de vacas magras se abriam entre todos os membros da companhia latas de sardinhas para improvisar mais uma refeição a meio de um trabalho que não tinha então quase apoios públicos. Depois disso – dizia-me ele – tudo lhe parecia próspero.
E foi justamente assim que o meu Amigo Mário Barradas viveu e morreu. Como uma árvore. Sólido e sereno. De pé.

Rui Vieira Nery

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