sexta-feira, 30 de abril de 2010

A Mosqueta, de Ruzante - o último trabalho de Mário Barradas

Quando convidei Mário Barradas para refazer a sua encenação de Comédia Mosqueta, de Ruzante, não podia prever que esse seria o seu último trabalho teatral. A Mosqueta foi, há 35 anos, um dos seus grandes espectáculos, com o grupo Os Bonecreiros e com interpretações notáveis de Mário Jacques e Fernanda Alves. A ideia de repor a Mosqueta envolvia objectivos óbvios: homenagem a Mário Barradas e ao intenso labor teatral que desenvolveu ao longo da vida; homenagem a Os Bonecreiros, um grupo pioneiro na história do desenvolvimento do teatro independente e da descentralização; homenagem a Fernanda Alves, uma grande actriz com quem tive a honra de trabalhar e por quem sempre nutri uma admiração profunda. E havia ainda a intenção de lembrar, numa época de crise de memória, o movimento do teatro independente, que transformou o teatro em Portugal, através de uma das suas criações mais conseguidas e emblemáticas. Fazê-lo no Teatro Municipal de Almada, um edifício que é, ele mesmo, um dos resultados dessa fascinante e arriscada aventura colectiva do início dos anos 70, parecia-me uma forma de prestar um tributo lógico e justo a toda a geração que renovou a estética, os reportórios e produziu uma significativa alteração na relação dos actores com o público, modernizando o teatro português e elevando-o ao plano do teatro europeu.
Foi com entusiasmo que Mário Barradas aceitou o projecto. E com entusiasmo que começou a preparar o que devia ter sido o seu segundo trabalho no TMA: a encenação de Troilo e Créssida, de Shakespeare. A realização da peça, nunca representada em Portugal, foi um dos sonhos de toda a sua vida, partilhado com o cenógrafo francês de Christian Ratz, seu antigo colega na Escola do Teatro Nacional de Estrasburgo, em que fez a sua formação. vicissitudes várias impediram-no de realizar esse sonho. Quando estava prestes a consegui-lo, surgiu a morte.
No Jornal de Letras, Artes e Ideias, a propósito do fim inesperado de Mário Barradas, Rui Vieira Nery publicou um artigo que intitulou «As árvores morrem de pé»: não podia sintetizar-se melhor numa frase a personalidade de Mário Barradas.
Fundador do Centro Cultural de Évora (hoje Cendrev), Mário Barradas trocou a carreira de advogado (com um escritório na então Lourenço Marques, hoje Maputo), pela de encenador e de actor. Depois de completada a sua formação em Estrasburgo, dirigiu, por convite de Madalena Perdigão, a comissão de reforma do Conservatório. Com o 25 de Abril, torna-se no primeiro teórico da descentralização cultural e instala-se na capital do Alentejo para aí promover a apresentação pública das suas ideias. Acompanhei-o na criação do ATADT (Associação Técnica e Artística de Descentralização Cultural), cuja presidência alternámos, e que teve um papel crucial no estudo das formas de reestruturação do teatro português (infelizmente sem grande eco nas instâncias do poder...) e cuja história está por fazer.
Mário Barradas foi, também, um mestre. Criou a Escola de Évora e foi responsável pela formação de numerosos homens do teatro em Portugal. A vida e o processo de desenvolvimento de teatro descobriram, para mim e para ele, caminhos paralelos, que nunca permitiram um trabalho conjunto. Mas estivemos sempre em diálogo, trocando experiências, reflexões e, muitas vezes, polemizando, porque se, ideólogica e artisticamente partilhávamos posições e objectivos, nem sempre coincidimos na escolha das formas práticas à sua concretização.
A memória que guardo de Mário Barradas é a de um grande homem de Teatro que sacrificou tudo, com exemplar abnegação, a um projecto de teatro que era, visando a criação de um novo público e de uma nova mentalidade, num País cujo atraso o incomodava, mas que ele amava verdadeiramente, e para cujo desenvolvimento desejava ardentemente contribuir.
Decidimos manter o projecto de Troilo e Créssida, apesar da sua morte. O seu amigo fiel, o cenógrafo Christina Ratz, aceitou o encargo de se responsabilizar por esta parte da herança artística de Mário Barradas. Foi com a sua colaboração que convidámos um prestigiado encenador suíço, Michel Kullemann, a dirigir a obra. Kullemann, que trabalhou com Mathias Langoff, Peter Brook e outros grandes directores, é um actor e encenador de grande prestígio, que foi amigo de Mário Barradas. Todos nós, com Christian Ratz, com os actores que ele tinha escolhido da Companhia de Teatro de Almada, da Companhia de Teatro de Braga e de A Companhia de Teatro do Algarve (os três produtores do espectáculo), tudo faremos para que o seu sonho de estrear Troilo e Créssida em Portugal possa ser concretizado.
É a homenagem devida a uma personalidade que influenciou decisivamente o teatro português das últimas quatro décadas.

Joaquim Benite
In "Revista Mais TMA", nº 6