quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A Grande Imprecação ou a Partida de um Amigo

Corria o ano de 1985, era Junho, estava uma daquelas noites que só há no Alentejo e havia festa. ao ar livre. Creio que o motivo era um dos santos populares, mas nem disso tenho a certeza e podia até não ter outro motivo que não fosse o do salutar convívio. Recordo (ou imagino?) que estava lua cheia mas se calhar era só dentro de mim. Ou então era da intensidade das luzes e da vibração que ali se vivia. Bebia-se para matar a sede e cortar o calor e havia música. Nas noites do Alentejo há sempre música. eu tinha chegado a Évora há escassos meses e conhecia pouca gente, mas tinha sido convidado para aquela festa por um amigo de data mais recente que a da minha chegada, desejoso de contribuir para a minha integração. Fui, porque era uma rara oportunidade de penetrar naquilo que eu adivinhava ser a difícil mas rica intimidade alentejana. Havia muita gente mas eu, pouca conhecia. As conversas eram esparsas, mais no sentido de saber quem era aquele estranho que por ali andava que outra coisa. Comia-se, bebia-se, falava-se, dançava-se. De repente, no meio da noite, no meio da escada (havia uma escada que dava para um terraço), soou uma voz tonitruante e aconteceu poesia. Recordo a imagem de um homem feito tribuno esculpido sobre o escuro da noite, voz forte e segura, recortando cada verso, cada sílaba, saboreando e fazendo-nos saborear cada som em cada gesto. Pessoa ali tão próximo. A música que antes existia transformou-se tão só em poesia, ou terá sido a poesia que se transformou em música? no silêncio assim construído, só se ouviam as cigarras que escolhem as noites quentes para se cortejar e aquela voz, naquele corpo de poeta tribuno. E foi um, mais outro, e ainda outro poema, declamação pessoana na noite na noite quente de cigarras. Era o Mário Barradas! Ficou-me a imagem, o som e a imagem dele nessa minha "primeira" noite de Évora. Reencontrava assim a tertúlia, já quase desaparecida da Lisboa de onde vinha. Essa tertúlia era ainda possível em Évora! E de que forma! Outras noites se seguiram, mas aquela marcou-me mais. Depois tornei-me frequentador do "Garcia", do Teatro Garcia de Resende, como em Lisboa era frequentador da Barraca, da Casa da Comédia ou do Teatro Aberto e de uma série de outros locais de espectáculos. E tornei-me amigo do Mário. Amigo, porque admirador já era. Essa admiração datava de uma noite de 1973, também especial, em que tive o privilégio de assistir, em Lisboa, à "Grande Imprecação diante das muralhas da cidade", no à altura Instituto Alemão, ao Campo Santana. Essa peça de teatro, encenada por Mário Barradas, marcou-me e marcou quem a viu, e imagino que terá marcado também quem a fez. Não porque não soubéssemos, todos, o significado da "nossa" guerra, da guerra colonial, mas porque era urgente discuti-la assim, numa ilha de Lisboa arrancada ao fascismo, vencido lá na Alemanha, mas bastante aceso por cá. Quem vive em ditadura precisa que lhe afirmem a liberdade de pensamento e foi exactamente essa coragem que aconteceu. Essa coragem tiveram-na Mário Barradas e um punhado de profissionais de teatro, que o promoveram assim à arma de combate que efectivamente é.
Mas foi em Évora que "aprendi" o Mário. Desde os encontros no final das estreias às conversas modorrentas em cálidos fins de tarde na Praça do Giraldo ou na esplanada da Rua João de Deus, ou algures na cidade. Qualquer motivo servia para dois dedos de conversa, qualquer altura era boa para pegar a falar por eternidades que pareciam só momentos. Porque o Mário não tinha dogmas nem preconceitos: tudo e todos era discutíveis e ninguém era dono da verdade. Creio que de tudo discuti com ele; desde as notícias ouvidas num qualquer jornal, até à vida da cidade. E por tudo era interessado. E em tudo nos interessava. A sua inteligência não tinha baias, nem partidárias nem quaisquer outras. Tudo era discutível e tudo se discutia, desde que houvesse lhaneza na argumentação. O Mário continuava a ser o ilhéu plantado no meio do mar, onde todos os barcos que aportam são bem vindos, onde cada um traz a sua verdade e com ela contribuiu para a verdade geral. O Mário trazia assim os seus Açores no olhar e na voz, e deles não prescindia. Recordo que uma tarde o encontrei na Praça do Giraldo e me disse que estava ali à espera de um amigo. Perguntei-lhe a que horas tinham combinado encontrar-se e ele disse-me que não tinha combinado nada, mas que o amigo passaria por ali. "Tens a certeza?" perguntei-lhe eu. "Sim", disse ele, "o tipo passa aqui para ir para casa. só não sei a que horas...". E eu lá me sentei, fazendo-lhe companhia e fazendo-me convidado para alguns minutos de tertúlia sem fim determinado. Lá estivemos na boa da conversa até que ele me disse: "Olha, lá vem o tipo. Eu não te disse?" Tinha dito, tinha, assim me ensinando mais um pouco desta cidade sem tempo onde o viver flúi. É esse homem inteiro (porque íntegro, coerente e dialéctico) que já não vou voltar a ver passar na Praça do Giraldo em qualquer fim de tarde. É desse Mário, fonte inesgotável de ideias, pensamentos e imagens que vou sentir falta. Do jurista, do homem de teatro, do homem de cultura, sentiremos também falta, mas desse Mário Barradas muitos falarão melhor que eu. Eu, só vos falo do Mário das tertúlias de que vou sentir falta.
Fernando Pinto

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